sábado, 6 de dezembro de 2014

SAGA NORDESTINA

A obra sem fim para levar água ao sertão nordestino brasileiro

Com sete anos de atraso, as águas da transposição do São Francisco passam a correr

Mas tudo indica que até o final de 2015, prazo do Governo, a obra ainda não estará pronta




ALEX ALMEIDA
A agricultora Lindomar Ferraz Silva, de 65 anos, aponta para uma mangueira solitária quase sem folhas num descampado da zona rural de Floresta, cidade do sertão pernambucano onde nasce um dos eixos da transposição do rio São Francisco. No local ficava sua casa, que não existe mais. “A mangueira foi deixada ali, de recordação”, conta.
O terreno de Lindomar, cuja área equivale a dois parques Ibirapuera e meio, começou a se transformar em 2007. A vegetação rala e cinzenta da caatinga foi tomada por um canal de concreto que terá 477 quilômetros de extensão, feito para levar a água de um dos principais rios do país para onde as pessoas não têm, sequer, o que beber, em 390 municípios dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte.
Sete anos depois dos primeiros sinais da bilionária obra, e quatro anos mais tarde do que o previsto, a aposentada conseguiu, finalmente, ver um tantinho de rio passar em seu quintal. É ali que fica o reservatório Areias, o primeiro a se encher d’água, no último mês de outubro, quando os primeiros testes da transposiçãocomeçaram.
No final da tarde de 13 de novembro, ela observava sua criação de cabras descer pelo concreto do canal para saciar a sede. Naquela manhã, ela própria havia enchido alguns baldes no reservatório, para usar em suas “coisinhas” de casa. Mas Lindomar ainda não sabe quando, nem como, passará a receber uma parte do rio pelas torneiras de sua nova casa, construída ao lado do canal e da represa, com o dinheiro pago como indenização pela passagem da obra.
As cabras usam o trecho de canal por onde passa a água para saciar a sede. /ALEX ALMEIDA
Uma das principais obras hídricas do Governo federal nos últimos anos, a transposição do rio São Francisco tem seguido a passos lentos. Prometida, inicialmente, para 2010, ela teve seu prazo estendido pelo próprio presidente Lula (PT)em dezembro daquele mesmo ano. Na ocasião, em visita à região, ele afirmou: “Estou percebendo que a obra vai ser inaugurada, definitivamente, em 2012, a não ser que aconteça um dilúvio.” Mas, mesmo em meio a maior seca já ocorrida na região nos últimos 50 anos, a entrega atrasou novamente. Agora, está programada para dezembro de 2015 e o Governo garante que, desta vez, não haverá nova prorrogação. “Estamos completando a meta piloto no Eixo Leste conforme o cronograma”, comemorou o secretário-executivo do Ministério da Integração, Irani Ramos, em um vídeo gravado pelo Governo após o início da passagem da água neste final de outubro.
Mas, a um ano de vencer a nova promessa, tudo indica que a construção não estará pronta a tempo mais uma vez. Ainda resta 32% da obra por fazer. Das seis metas de trabalho do projeto, divididas ao longo de dois Eixos (Leste e Norte), apenas uma está próxima do fim. Justamente a mais curta: a que compõe os 16 quilômetros de canal entre o reservatório de Itaparica, onde a água do São Francisco é captada, até o de Areias, no terreno de Lindomar. Todas as outras cinco têm menos de 75% da construção finalizada- uma tem só 30%.
O EL PAÍS percorreu por quatro dias uma parte da obra, e viu um enorme retalho de concreto com trechos prontos e outros onde a construção mal começou. Poucos pedaços já estão interligados.
Há casos como o da área que cruza o assentamento Serra Negra, localizado dentro da segunda meta do Eixo Leste. Apesar de o Governo considerar que 71% dessa meta já está feita, na área do assentamento o canal ainda está sendo escavado. A construção no terreno, reivindicado pela comunidade indígena Pipipan, enfrentou diversos protestos até que se chegasse a um acordo. Os sem-terra de Serra Negra também só concordavam com o início da construção do canal quando o posto de saúde e as quatro casas que teriam que ser demolidas fossem reconstruídas em outro local. Na segunda semana de novembro, centenas de operários corriam em meio a dezenas de caminhões e de tratores, trabalhando, inclusive, durante as noites.
Tratores escavam área onde ainda será implementado o canal. / ALEX ALMEIDA
A imagem contrastava com o que se via em outra área, a poucos quilômetros de distância, onde ficará a barragem de Cacimba Nova, também em Pernambuco. A construção ali estava adiantada, mas há alguns meses foi abandonada. Os sinais estavam no local: placas viradas, um buraco de terra revirado e árvores crescendo em meio ao concreto do canal. Só as cabras dos agricultores circulam por ali. “A obra foi parando aos poucos, mas há uns dois meses os operários foram embora”, diz Mauriceli Bevenuto da Silva, de 35 anos.
A família dele, que mora perto do local, depende da água enviada pelo Exército em caminhões-pipa. Na vila de cinco casas, só uma das cisternas é abastecida por essa água gratuita. “A gente divide. Dá para poucos dias. Depois tem que pegar o carro de boi e buscar água num poço.” Eles também compram. Um tambor de 200 litros, para 15 dias, custa 20 reais. Não se sabe a procedência dessa água.
Situações como essa deixaram a obra 82% mais cara: um salto de 4,5 bilhões de reais para 8,2 bilhões. Também levaram desesperança a milhares de famílias, que sonham com a solução, que é planejada desde o século 19. E geraram inúmeras desconfianças. Há aqueles, como o padre Sebastião Gonçalves da Silva, destacado pela igreja para acompanhar os afetados pela obra, que acreditam que apenas o agronegócio lucrará com a grandiosa estrutura. Já o Governo federal garante que a água será destinada também aos pequenos agricultores.O Ministério da Integração diz que o atual prazo de conclusão das obras é o “compatível com a complexidade do empreendimento, sobretudo se comparado a outras experiências de transposição de águas pelo mundo”. Diz que, em 2011, estabeleceu um novo modelo de licitação, contratação e acompanhamento das seis metas da obra. A construção, picotada entre várias empreiteiras, enfrentou problemas devido a um projeto básico mal feito. No Ceará, por exemplo, ele indicava que o túnel Cuncas I, visitado por Lula naquele dezembro de 2010, deveria ser construído num terreno arenoso. A estrutura desabou quatro meses após a passagem do então presidente e foi refeita ao lado, onde o solo tinha mais qualidade.
Enquanto as águas do velho Chico não chegam, definitivamente, para as 12 milhões de pessoas no caminho da obra, a agricultora Lindomar já sabe o que fazer com o trechinho de rio que cruza o seu pedaço de sertão: “Vou comprar uma bomba pequena, dessas à gasolina, e puxar a água do reservatório direto para a minha caixa d’água.”
Fonte: El País

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